FOLHA DE S.PAULO – 11/06/2016
POR FARHAD MANJOO
Imagine que você é um parlamentar francês e há décadas protege implacavelmente a produção cultural da sua nação. Você impôs quotas para a indústria cinematográfica francesa, exigiu que as rádios tocassem mais música francesa do que as pessoas queriam ouvir e se empenhou em isentar as medidas das regras internacionais do livre comércio.
E agora aparecem empresas de tecnologia americanas para acabar com todas as suas defesas culturais. De repente, praticamente tudo que um cidadão francês compra, lê, assiste ou escuta passa por esses gigantes.
Aí está o Facebook cooptando a sua mídia. A Amazon dominando a venda de livros, e o YouTube e a Netflix assumindo o controle do audiovisual. E os smartphones, sem dúvida a mais importante plataforma de entretenimento desta época, são quase totalmente controlados pela Apple e o Google.
Essa preocupação social explica por que a Europa está em marcha contra os gigantes da tecnologia americanos. Os governos europeus vêm tentando limitar o alcance das empresas do setor, na maioria das vezes valendo-se de regras de proteção da privacidade e de investigações antitruste. Agora, a Comissão Europeia cogita medidas para obrigar empresas de streaming, como a Netflix, a fornecer e até mesmo pagar por conteúdo local nos mercados onde atuam.
Ao longo dos próximos anos, deveremos ver cada vez mais atritos entre o pequeno grupo de empresas tecnológicas que dominam grande parte do setor e governos do mundo todo. O que está ocorrendo na Europa acontece também na China, Índia, Brasil e outros países.
Antigamente, muitos achavam que a tecnologia digital representaria a aurora de uma nova ordem global. A estrutura da internet era descentralizada e não hierárquica; parecia incontrolável por qualquer governo. A rede reduziria distâncias e conectaria culturas, criando um novo sistema mundial de normas jurídicas mais uniformes.
Mas não é assim que está sendo.
“Cada vez mais, veremos esses governos fazendo exigências, e o problema é uma fragmentação das empresas globais de tecnologia”, disse Dongsheng Zang, diretor do Centro do Direito Asiático da Escola de Direito da Universidade de Washington.
Já assistimos ao surgimento do Quinteto Inquieto — Apple, Amazon, Facebook, Microsoft e Alphabet, empresa controladora do Google. Elas criaram um conjunto de plataformas tecnológicas inescapáveis, que governam grande parte do mundo empresarial.
O fato de todo o Quinteto ser americano é visto mundo afora como motivo de preocupação. Essas empresas poderiam crescer tanto e se incrustar de tal forma nas economias mundiais que na prática teriam o poder de fazer as suas próprias leis.
“O que está acontecendo atualmente é que o Estado-nação está perdendo seu domínio”, disse Jane Winn, também professora na Escola de Direito da Universidade de Washington. “Uma das características da modernidade é que você tem um Estado-nação que afirma ser a fonte exclusiva de um sistema jurídico universal, que trate de todas as questões legais. Mas agora as pessoas numa jurisdição estão sujeitas a regras que vêm de fora do governo.”
Winn citou o exemplo da Amazon. O gigante do comércio eletrônico vende em sua plataforma os seus próprios produtos e os de outros fornecedores. Ela impõe um conjunto universal de regras a muitos fornecedores nos países onde atua. Quanto maior for a Amazon, maior será a possibilidade de que suas regras passem a ser vistas como a regulamentação mais importante de todo o comércio eletrônico. E, como a Amazon tende a se dedicar aos serviços que presta ao consumidor, em detrimento de outros valores que um país possa querer priorizar — os direitos trabalhistas, digamos —, a empresa poderia tornar-se imune à fiscalização dos governos.
Como os governos poderão contê-las? Impondo-lhes ônus maiores para limitar seu alcance, algo que já está acontecendo com frequência cada vez maior.
O governo indiano simplesmente impediu o plano da Apple de vender iPhones recondicionados no país. Antes, havia proibido o plano de internet grátis do Facebook, que havia sido apontado no país como uma espécie de cavalo de Troia para dominar a infraestrutura digital indiana.
Na China, a Apple fechou as suas lojas iBooks e iTunes Movies, aparentemente por causa de pressões governamentais.
Por outro lado, a Apple investiu US$ 1 bilhão (R$ 3,4 bilhões) na Didi Chuxing, versão local do Uber, num movimento surpreendente, que foi interpretado por observadores da China como uma forma de obter complacência no país.
Os gigantes americanos da tecnologia são enormes, mas precisam das bênçãos dos governos nacionais, e essas bênçãos não vêm facilmente.
“Eles estão enfrentando uma Índia, um Brasil e uma China cada vez mais autoconfiantes”, disse Zang. “Se não recuarem, [esses governos] provavelmente terão força para impor regras que limitem a forma como essas empresas entram nos mercados locais.”
Como disse o jornal francês “Le Monde” na véspera do lançamento da Netflix na França. “Que le carnage commence!”. Que comece a carnificina!
http://www.anj.org.br/2016/06/13/governos-globais-reagem-a-invasao-de-gigantes-americanas-da-tecnologia/